O currículo e a liberdade vocacional

O currículo e a liberdade vocacional

Pedro Flexa Ribeiro*

 

Publicado originalmente no Jornal Correio Braziliense no dia 07/06/2018.

 

      Na História da Educação no Brasil, um ponto sempre mal compreendido foi a formação para o trabalho e o ensino técnico-profissionalizante. A Escola Unitária seria a solução para um grave problema a ser superado: a "dualidade" do sistema de ensino brasileiro. Ao oferecer trajetórias diferentes, a escola segregava ainda mais, acentuando as diferenças que desde sempre marcavam as classes sociais.

      Um currículo único e obrigatório seria então a estratégia necessária para, através da escola, superar-se as desigualdades sociais. Ao longo de boa parte do século XX educadores brasileiros polemizaram acerca desse tema, que permeou manifestos que marcaram época na Historia da Educação no Brasil. Nessa perspectiva, importava assegurar aos filhos das classes trabalhadoras o mesmo repertório de conteúdos a que tinham acesso os filhos das classes trabalhadoras. Contudo, o resultado não foi o esperado. O que se viu foi o engessamento das potencialidades.

      Na Europa, desde sempre as diferentes corporações de ofício conceberam programas e currículos específicos para a iniciação profissional de aprendizes em cada especialidade. A reforma protestante favoreceu a livre circulação de ideias. Naquelas sociedades, liberdade de ensino e a diversidade curricular estiveram postas desde o início.Enquanto isso, no Brasil a busca por superação das desigualdades, embora justificável, enveredou pelo caminho populista de acenar com a promessa de uma "Universidade para todos". Essa perspectiva explica a busca por um currículo único, que inviabilizou o ensino profissionalizante.

      Assim, no debate sobre a Reforma do Currículo que está em curso no país, convém termos em mente a longa tradição de centralização de que o ensino brasileiro é fruto. Superada a ditadura militar e restabelecida a democracia, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 procurou reverter esse quadro estimulandoas escolas a desenvolvero seu próprio ProjetoPedagógico, em consonância com a sua identidade e a sua vocação institucional.

      Contudo, a mesma lei instituía também o sistema de avaliação em larga escala como instrumento para monitorar a qualidade do ensino. Com o tempo, ficou claro que as avaliações passaram a ser"o novo braço"por meio do qual o governo pretendeu exercer o monopólio e o controle sobre o que se ensina em todas as escolas do país.

      O propósito de formar novas gerações remete o nosso olhar para adiante. Hoje frequentam as escolas alunos cujas trajetórias de vida se desenvolverão pelo século XXI afora, em um contexto convulsionado pelos impactos das intensas mudanças tecnológicas. A inteligência artificial torna possível a substituição de funções até então desempenhadas apenas pelo cérebro humano. Essas inovações estão mudando rapidamente a maneira como cidades e negócios se organizam e afetam o mercado de trabalho, fazendo surgir novas profissões e desaparecer outras.

Somos contemporâneos de uma grande revolução. Seu impacto gera instabilidade política no mundo e fortalecimento dos radicalismos.As crianças e os jovens e brasileiros receberão como legado um país a reconstruir. Precisarão enfrentar o desafio de equacionar as desigualdades sociais e de assegurar ao Brasil inserção internacional.

Esse contexto será determinante para as circunstâncias em que se desenrolará a trajetória de vida da próxima geração, o que traz grandes desafios para os que se ocupam de sua educação. Nunca antes uma geração de educadores enfrentou o desafio de conceber trajetórias escolares em meio a tanta imprevisibilidade. Mais do que nunca, tornam-se necessárias as inovações e experimentações em termos de ensino. Por isso, foi sábia a decisão do MEC ao reconhecer a diversidade como importante atributo dos sistemas de ensino no Projeto de Reforma do Ensino que acaba de encaminhar aos Conselhos de Educação de todo o país, a quem caberá a condução e a concretização desse processo.

      A inovação curricular, hoje tão necessária para a construção de um país plural, que respeita as liberdades vocacionais como pressuposto do trabalho, brotará da liberdade que se tenha para ousar e experimentar. Os Conselhos de Educação têm agora a grande responsabilidade de instaurar no país um cenário em que famílias e jovens possam exercer suas escolhas acerca do tipo de escolaridade e de currículo que lhes convier, conforme suas crenças e expectativas. Fiquemos todos atentos a esse processo.

 

*Educador e Diretor do Centenário Colégio Andrews do Rio de Janeiro

 



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