Aonde queremos ir?

 
   Aonde queremos ir?
 
     A trajetória republicana brasileira é uma história que pode ser contada a partir da crônica de seus golpes (a começar pelo que lhe deu origem), levantes, deposições, renúncias e impeachments, sejam eles expressos ou brancos. É uma história conturbada, com alguns episódios violentos, apesar do folclore apontando o contrário.
    Nem precisamos retroceder tanto - como, por exemplo, à Revolução Federalista (1893), à Revolta da Armada (1893) ou às "guerras" de Canudos e do Contestado (1897 e 1912/16, respectivamente) - para firmamos esta percepção. Quase todos esses incidentes (ou acidentes) institucionais revelam falta de maturidade política.    
    O antagonismo político exacerbado, que ignora a regra democrática de respeito às diferenças e ao resultado das urnas, sobretudo, tem sido um ingrediente sempre presente na vida política brasileira. 
    Tomemos como ponto de partida a década de 1920 e o movimento tenentista de orientação liberal - porém, reconheça-se, de caráter golpista - que seguiu produzindo consequências ao longo de todo o século XX, marcado por crises políticas e quebras da continuidade institucional. 
    A partir dali, resumidamente, tem-se, com inspiração e métodos semelhantes, a Revolta de 22 ("18 do Forte"), a Revolução Paulista de 1924 e a Revolução de 1930, que marca o fim da Velha República, com suas cartas marcadas (a política "café-com-leite"). 
    Contra o arbítrio político, o domínio das elites financeiras e a fraude eleitoral o golpismo é legítimo e justificável? O tenentismo entendia que sim. Logo em seguida, em 1932, tem-se, em resposta, a Revolução Constitucionalista, liderada por São Paulo contra o governo de Getúlio. 
    Entre os tenentes revoltosos da primeira metade do Século XX estavam, entre outros, Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, Siqueira Campos, João (Alberto Lins) de Barros, Juarez Távora, Miguel Costa, Luís Carlos Prestes. O movimento tinha o apoio - e a participação destacada - de civis como Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha. Estavam entre eles também, vale lembrar, Geisel, Médici e Castelo Branco.     
    Com eles - ou, em grande parte, por causa deles -, à exceção de Prestes, àquela altura já aderente à causa comunista, Getúlio assumiu o poder em 193O. Serviu-se deles e virou-lhes as costas. 
    A despeito de visões de mundo e de ideologias distintas - que no decorrer do tempo foram sobressaindo e elevando o grau de antagonismo entre oponentes - havia um desejo comum a unir todos esses nomes, de Prestes a Vargas, passando pelo udenista Eduardo Gomes e o próprio Ernesto Geisel (com sua concepção desenvolvimentista semelhante ao "capitalismo de Estado" ensaiado, veja só!, pelos governos Lula-Dilma). 
    O ponto em comum, se é que se pode dizer assim, era a possibilidade de imprimir ao país um choque modernizante capaz de reformar não apenas as suas estruturas políticas, como também as sociais e econômicas. Em resumo, tratava-se de lançar um país eminente agrário e de práticas políticas arcaicas em outro patamar sócio-econômico. 
    Sigamos a cronologia da instabilidade. Em 1935, com Vargas no poder, mas o país em situação política instável, quem tentou o golpe à sua maneira foi Prestes. (A "Intentona" ou o "Levante Comunista" que liderou acabou sendo um retumbante fracasso, com falhas do planejamento à execução que ajudaram a desfazer um mito). 
    Dois anos mais tarde, quem dá o golpe é o próprio presidente da República, Vargas, instituindo a Ditadura do Estado Novo. Usa como justificativa para a exceção - se é que precisava de uma justificativa - a própria ameaça à estabilidade institucional.  Em 1938, por sinal, quem tenta um levante são os integralistas. 
    A ditadura dura oito anos. Em 1945, com o fim da guerra contra o fascismo e os ventos liberalizantes soprando mais fortes no Brasil, Vargas é forçado a convocar eleições. Golpe contra o autoritarismo e a ditadura, ainda que pacífico, é legítimo? Foi o que ocorreu. Mas, redemocratizado, com eleições livres naquele ano, o país não se viu livre das escaramuças institucionais. 
    O populismo demagógico e irresponsável, aninhado de um lado, e o conservadorismo obtuso e indiferente aos problemas sociais, entrincheirado do lado oposto, via de regra, dissimulados, respectivamente, em bandeiras da esquerda e da direita, seguiram minando as possibilidades de trajetória estável e de desenvolvimento econômico consistente nos anos seguintes.   
    Voltemos ao retrospecto. Houve novamente o que podemos chamar de intercorrências de constitucionalidade - com menor ou maior gravidade - em 1950, 1954, 1961, 1964 e 1992. 
    Em 1950, o embate deu-se em torno da possibilidade ou não da candidatura Vargas (ex-ditador pode se candidatar, se eleger e tomar posse? Oposicionistas, Lacerda à frente, entendiam que não). Em 1954, uma crise política aguda (potencializada pelas oposições), com ingredientes econômicos e denúncias de corrupção, culminou com o suicídio do presidente e ex-ditador, seguido da dúvida quanto à possibilidade ou não de seu vice assumir o cargo.  
    Em 1961, com a renúncia de Jânio, mais um impasse: vice de partido e com programa de governo opostos ao do presidente que deixa o cargo pode assumir o poder? A regra constitucional dizia que sim, a cautela política entendeu que não, criando um parlamentarismo canhestro que durou pouco. 
    A regra constitucional, prevendo a eleição de presidente e vice de partidos distintos era incoerente e inconsequente, mas era a regra. O golpe civil-militar de 1964 veio na esteira do ativismo político iniciado pelo movimento tenentista nos anos 1920. Estavam entre os seus líderes, lembre-se, Geisel, Médici, Castelo, tenentistas de outrora. 
    Olhando em retrospectiva, 1964 foi  consequência e não causa. E foi civil-militar porque não teria tido êxito sem o apoio decisivo da sociedade - queira-se ou não. Assim como o Estado Novo, via-se como um "projeto modernizante" para o país, daí o termo "revolução" com o qual se auto-intitulou. 
    Regimes de exceção não são eternos, embora nem sempre cheguem ao fim pela força. Restabelecida a democracia, após a Constituição de 1988 (precedida pela Campanha das Diretas-Já, de 1984, e pela eleição do oposicionista Tancredo Neves, via Colégio Eleitoral, em 1985), o voto livre, direto e universal levou à Presidência, em 1989, um presidente que acabaria afastado por um processo de impeachment
    O "terceiro turno" das eleições, portanto, não é uma novidade no Brasil. Hoje, o PT acusa seus oponentes de lançar mão dele contra o governo Dilma, mas o partido foi o mentor do artifício. 
    Afastar presidente, via processo político, é legítimo? No caso de Collor, parece não haver dúvidas que sim, embora ele jamais tenha sido condenado por corrupção na esfera judicial. Não custa lembrar que foi também a imaturidade política que alçou Collor à Presidência da República. 
    O primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva foi fortemente abalado pelo episódio do Mensalão (o esquema montado pelo governo para cooptar parlamentares), em 2005/2006, sem que o seu afastamento tenha sido politicamente viabilizado. As provas eram tão presentes quanto no episódio de Collor, e é difícil dizer se a blindagem decorreu do apoio político dentro do Congresso, da alta popularidade ou de ambos. 
    Em que condições então um impeachment é aconselhável? (e nem estamos falando aqui dos requisitos legais, apenas da conveniência político-institucional). Como saber quando a permanência de um presidente que perdeu a credibilidade gera mais instabilidade institucional do que o seu próprio afastamento? 
    Porque a questão de fundo é saber se estamos contribuindo para o fortalecimento da democracia ou minando os seus fundamento. A nossa trajetória "republicana", como vimos, recomenda ponderação. 
    Mais de 60% dos brasileiros hoje desaprovam o governo Dilma Rousseff. E mais de 63% apoiam um processo de impeachment contra a presidente, segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada semana passada. As mais de 600 mil pessoas que foram às ruas neste domingo em 152 cidades brasileiras, de 25 estados mais o Distrito Federal, tinham, entre as suas principais bandeiras, o afastamento da presidente. 
    Há menos de seis meses, Dilma Rousseff foi reeleita com mais de 54 milhões de votos (51,64% dos sufrágios válidos).  A julgar pelo mau governo que realizou no primeiro mandato - como demonstram, de forma intestável, os indicadores econômicos e os escândalos de corrupção -, o resultado foi uma prova cabal de falta de maturidade política do eleitorado, que, desinformado, sucumbiu à propaganda.     O despertar veio tarde.   
    Mas é preciso saber aonde queremos ir. Se agirmos com maturidade política, só levaremos adiante a ideia de impeachment se surgirem provas claras do envolvimento da presidente nos escândalos de corrupção que marcaram o seu governo. Até o momento, essas provas não estão presentes. 
    Se surgirem, devemos estar cientes de que, embora legal, com previsão constitucional, o processo é traumático e pode significar um novo retrocesso, sobretudo num momento em que o país tem nova condução na área econômica e começa a reconquistar a credibilidade perdida nos últimos quatros anos. 
     Não se pode trocar governos a cada fracasso, por pior que sejam (como este foi). É preciso estabilidade de regras. Democracia é assim mesmo: dá trabalho e requer esforço reiterado, com depuração do eleito, via qualificação do eleitor. 
 
Por Nilson Mello 
 
Anote: 
 
. A violência nas revoltas no Brasil - Na Revolta do Contestado, citada no início deste texto, houve sucessivas ocorrências de castração de prisioneiros, de ambos os lados, antes da execução, geralmente por degola ou fuzilamento.


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