A literatura política na ficção

A literatura política na ficção

Por Nilson Mello
07/03/2104

Em O homem que amava os cachorros, o premiado escritor cubano Leonardo Padura expõe de forma contundente as contradições de uma ideologia que tolhe a expressão da individualidade na sua autoproclamada e paradoxal busca pelo bem-estar dos indivíduos.

A repressão dos autênticos anseios pessoais e sua submissão a projetos ideológicos, em nome de interesses coletivos supostamente mais elevados, tem sido a fórmula infalível do fracasso de Estados que acreditam poder refundar a natureza humana por meio da força. Lamentavelmente esse foi também um ingrediente determinante dos grandes conflitos do século XX.

O marxismo identificou na mais valia - na apropriação, pelo empregador, de uma parcela do trabalho do empregado e na sua transformação em lucro - a causa das injustiças sociais. A eliminação das classes, da propriedade privada e, por consequência, do próprio lucro transformaria a humanidade.

O diagnóstico vigoroso conquistou o mundo. De forma subjacente, contudo, a doutrina preconizou, a despeito das evidências em contrário, algo que nem as religiões monoteístas, fundadas na fé absoluta num Deus infalível, arriscaram fazer: tornar o homem um ser perfeito, livre de vícios.

O desmoronamento do Bloco soviético no final dos anos 1980, depois de décadas de promessas originadas na Revolução de outubro de 1917, provou que o bem-estar da coletividade não pode ter como pressuposto o sacrifício dos projetos individuais. Hoje, quem se livrou do “dogma” percebe que são as aspirações pessoais a mola propulsora do mundo, porque delas depende a eficiência econômica. A soma dessas aspirações, dentro de um ambiente regrado, garantirá os avanços da sociedade em direção ao progresso.

A Lei deve coibir abusos e garantir igualdade de condições na competição - resguardando direitos aos menos capacitados e às minorias - sem, contudo, nivelar indivíduos, que são, por natureza, desiguais. Essa é a verdadeira sociedade justa, e não aquela que, por decisão autoritária de um Estado onipresente, define o que cabe a cada um.

A força do livro de Padura está no fato de não ser uma crítica previsível ao modelo. A sua ficção presta uma homenagem à história. O próprio autor foi forjado no sistema (nem tudo foi em vão, afinal!).

O relato esterilizado da trajetória de Ramón Mercader, o executor de Leon Trotski que, em nome de um projeto revolucionário, anulou a sua individualidade e acreditou cegamente no que lhe determinaram, é didático sem necessidade de recursos a adjetivos ou a conclusões panfletárias. O mesmo vale para a história entrelaçada de Iván, jovem escritor, atônito com as diretrizes do regime cubano, às quais tenta, com sofrimento, se adequar.

 A grande fome que resultou da política de coletivização da agricultura promovida por Satlin (produtores rurais foram expropriados até de seus cães e sementes), entre 1929 e 1933, mencionada no livro de Padura, foi justificável na perspectiva revolucionária, mesmo tendo levado à morte milhões de pessoas? Ou podemos dizer que é a propriedade privada e, por extensão, a possibilidade de lucro, o maior incentivo à produção e a tão almejada segurança alimentar?

De forma mais prosaica, podemos ainda indagar - sem que isso tenha mais a menor relevância hoje, o que não deixa de ser trágico - com quem estava a legitimidade revolucionária, com Trotski ou Stalin?

As respostas não estão no livro, mas ele nos ajuda a perceber que há verdades irrefutáveis transcendentes à luta de classes.

 

Em tempo

      O PT engrena o ano eleitoral em briga aberta com o maior partido da base governista e, ao menos em teoria, o seu forte aliado nas urnas em outubro, dada a sua capilaridade Brasil afora. Dez em dez analistas seriam capazes de garantir que um revés do PT na eleição presidencial deste ano está condicionado a uma defecção do PMDB. Isso considerado é difícil entender a lógica que tem orientado o movimento da cúpula petista nos últimos dias. A não ser que a mídia esteja exagerando o confronto – o que é bastante provável.

  Anote

    Se não está à beira de uma crise, como lucidamente ponderou Armando Castelar Pinheiro, em artigo no Valor desta sexta-feira (07/03), a economia brasileira continua a dar sinais para preocupação. A piora na balança comercial em fevereiro é mais um deles. Vale, portanto, repetir a observação de Castelar: “...as reformas necessárias para acertar o rumo estão ao nosso alcance. Apenas temo que a situação tenha que piorar antes que elas sejam feitas”.



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