Rio: mito e alienação


Artigo da Meta Consultoria e Comunicação Ltda
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Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 2011


Rio: mito e alienação

 

Nilson Mello*

O carioca pode ser um otimista incorrigível ou um alienado irrecuperável. Ou ainda um povo paradoxal. Tudo depende da maneira como interpretamos a terceira edição da Pesquisa de Percepção Rio Como Vamos, recentemente divulgada. O mais provável é que seja um otimista incorrigível (e aqui não vai qualquer elogio) porque alimenta certo grau de alienação.

O dado mais badalado da pesquisa – alardeado pelos meios de comunicação - é que 76% dos cariocas se orgulham da cidade. Foi o maior percentual registrado em todas as edições do levantamento, que é realizado pelo Ibope. Soma-se a isso outros indicadores de satisfação, como o fato de 72% dos entrevistados não pretenderem se mudar, de 57% perceberem melhoria na qualidade de vida no último ano e de 68% se sentirem otimistas.

O perfil paradoxal fica por conta de outros resultados que contrariam o grau de satisfação. São eles: parte dos cariocas (44%) reclama dos detritos nas ruas e a maioria desses (66%) os atribui à falta de educação da população.

Para se orgulhar do Rio de Janeiro, o carioca deveria, teoricamente, considerar a cidade limpa, segura e dotada de serviços públicos de qualidade. Mas o Rio não é limpo nem tem bons serviços públicos. Por sinal, a segurança – ou a falta dela – ainda é o motivo que leva mais pessoas a mudar de cidade, revelou a pesquisa. Assim, se nesse aspecto em particular houve alguma melhora em relação ao passado recente, continuamos longe de parâmetros aceitáveis, mesmo para um país violento como o Brasil.

A Pesquisa Rio Como Vamos, criada para balizar políticas públicas, visando à melhoria das condições de vida da população, padece de um vício de origem. Quem opina não tem distanciamento crítico em relação ao objeto de avaliação, que se confunde com a sua própria imagem. Em outras palavras, o bairrismo entorpeceu a autocrítica indispensável ao reconhecimento dos problemas. O pressuposto de eventuais soluções fica, portanto, comprometido. Se a maioria acha que tudo está bem, apesar de estar muito mal, mudar o quê e para quê?

Vejamos. O Rio de Janeiro é sujo porque o carioca joga papel na rua, urina nos canteiros e despeja o lixo em terrenos baldios, rios, córregos e lagoas. O Rio sofre enchentes e desmoronamentos, que a cada ano vitimam centenas de pessoas, às vezes milhares, porque bueiros, canais, valas, rios e encostas estão entulhados com esse lixo.

O trânsito da cidade é caótico – e violento – porque o carioca ainda não aprendeu a dirigir com urbanidade: estaciona nas calçadas, avança os sinais, bloqueia cruzamentos, buzina frenética e desnecessariamente e para em cima da faixa de pedestres. Urbanidade, eis um vocábulo em falta no nosso trânsito.

Claro, os governantes, espelho dessa sociedade, são, eles também, responsáveis. Por isso não aplicam os recursos necessários na manutenção da iluminação, das ruas e calçadas, na limpeza dos bueiros ou no desenvolvimento de campanhas educativas mais contundentes e menos demagógicas.

São, na verdade, governantes de eleitores de pouco senso crítico e autocrítico, e como tal preferem, no lugar de uma eficiente manutenção, as obras faraônicas, perdulárias e frequentemente fraudulentas. Preferem o marketing do carnaval e da “Cidade Maravilhosa” às campanhas educativas.

A propósito da sujeira, noticiou-se, em paralelo à divulgação dos resultados da pesquisa, que vias de maior movimento, como as Avenidas Presidente Vargas e Rio Branco chegam a ser varridas cinco vezes por dia. Varridas sucessivamente e ainda assim muito sujas, como é visível.

O trabalho dos garis cariocas remete à condenação de Sísifo, o personagem mitológico que num recomeço infinito tenta rolar morro acima uma pedra que teima em não permanecer no topo. Sísifo foi condenado pelos Deuses. Os garis estão condenados pela indiferença e o desleixo do carioca. Se não há zelo com a cidade, o festejado orgulho é hipócrita.

Em suma, melhorias significativas no Rio de Janeiro só poderão resultar de uma mudança de mentalidade que valorize o senso comum de civilidade. Isso requer como pressuposto educação de qualidade, no sentido amplo, não estritamente acadêmico. E teria como conseqüência desejável e indissociável, em algum momento, o surgimento de governantes e de classe política mais qualificados, nas diferentes esferas.

Um ciclo vicioso que lembra a figura de Sísifo pela exaustiva repetição aguarda o momento de ser rompido. Até lá, o que temos é uma cidade que já foi mesmo Maravilhosa vivendo de seu mito. E seu povo demonstrando ter elevada – porém, não plenamente justificável - auto-estima, com superficial senso de autocrítica.

O que o Rio tem de melhor a natureza lhe deu. Nos últimos tempos, a contribuição do homem para preservar e valorizar esse patrimônio tem sido medíocre. Para resgatar o Rio de Janeiro de sua decadência (sim, decadência!), seria preciso encarar a realidade. Livre do mito e da alienação. Enquanto a maioria achar que está tudo bem, nenhuma mudança substancial se concretizará, a despeito dos prometidos investimentos para a Olimpíada e a Copa.



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