Quem disse que democracia é simples? |
Quem disse que democracia é simples?
Por Nilson Mello
Se um tribunal puder ter posições distintas acerca de um mesmo feito, jamais haverá segurança jurídica e estabilidade institucional – algo que contradiz a própria essência do Judiciário. Até porque quem garantiria que não haveria uma terceira decisão, num seguinte reexame, se cabível, e assim sucessivamente. No julgamento pelo Supremo da Ação Penal 470, originária por força do foro privilegiado, a possibilidade torna-se ainda mais evidente devido à mudança na composição da Corte, com o ingresso de dois novos integrantes que não haviam participado do processo, o que certamente amplia as chances de se ter, em segundo julgamento, um resultado distinto do primeiro. A virtual admissibilidade dos embargos infringentes, a ser definida com o voto de minerva de seu ministro decano, na próxima quarta-feira, é a condição que falta à revisão do processo e a redução (e até mesmo prescrição) das penas de doze dos 25 condenados. O resultado do extenso e detalhado julgamento do Mensalão, com suas 50 sessões no ano passado, estaria assim colocado em xeque. Impossível não reconhecer o impacto negativo na sociedade desse, digamos, “retrabalho”, na medida em que reforçaria a percepção de que a impunidade continua a prevalecer no Brasil para os poderosos e que o Judiciário (nem mesmo o seu órgão de cúpula, no qual tanta esperança se depositou) não estaria imune às idiossincrasias políticas. Por outro lado, o duplo grau de jurisdição é um desses institutos fundamentais no estado democrático de direito porque, partindo do pressuposto de que o juiz e, por extensão, os tribunais não são infalíveis, o mecanismo serve de garantia aos cidadãos contra eventuais erros e abusos do Judiciário. Assim como ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal, pois do contrário o monopólio da força, reconhecido ao Estado, seria desmedido, toda decisão judicial merece ser revista, a fim de que se afaste qualquer possibilidade de punição indevida ao réu. Se o Estado é indispensável na busca e na manutenção da harmonia social, seu poder de coerção e sua capacidade punitiva não podem ser irrestritos, sob o risco de prejudicar os cidadãos – justamente a sua razão de ser. Foge, portanto, a qualquer concepção razoável sobre justiça ou sobre a Justiça, em regime democrático (se é que se pode falar em Justiça em regime de exceção), a possibilidade de um processo penal sem chance de revisão. O Julgamento do Mensalão pelo Supremo, como ação originária, nos coloca assim diante de um novo desafio, ainda maior do que aquele que se prenunciou no início do processo, em 2012: fazer justiça, punir os culpados, mas observando estritamente todas as regras e princípios democráticos que nossa Constituição recepcionou. O empate em 5 a 5 entre os ministros do Supremo não pode ser visto como alinhamento automático em face de preferências políticas. Ao menos, não de todos eles. Pois, a rigor, e por mais que sintamos simpatia pela posição daqueles que propugnaram contrariamente à admissibilidade dos embargos infringentes, o que afastaria de pleno a possibilidade de reexame e, assim, de revisão das penas, o fato é que o recurso é legítimo. Sem resvalar para um tecnicismo enfadonho, é preciso lembrar que a legislação (Lei 8.038/90) não revogou expressamente os embargos infringentes previstos no Regimento Interno do Supremo (artigo 333 inciso I), disciplinando, no que toca o STF, apenas os recursos extraordinários. A norma regimental foi, portanto, recepcionada pela Constituição e, por decorrência, pelo Supremo, com força de Lei Ordinária, razão pela qual o ministro Celso de Mello, certamente o mais respeitado dos ministros, já tem voto favorável a esse tipo de recurso na própria Ação 470. O justificável temor expresso no voto do presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, ao rejeitar os embargos infringentes, de que a reapreciação de fatos e provas pelo mesmo órgão possa eternizar o julgamento, é apenas parte da verdade. A outra parte é que, num estado democrático de direito, nenhuma decisão judicial pode estar imune à revisão, sobretudo se há previsão legal para tanto. Quem disse que democracia é simples? ‹‹ voltar |